Crítica do filme Belfast – um elogio eufórico por parte de Kenneth Branagh à sua cidade natal

Por Peter Bradshaw – The Guardian.

Existe um calor e uma ternura incríveis no filme autobiográfico elegíaco de Kenneth Branagh sobre a Belfast da sua infância: vibrantemente escrito, lindamente interpretado e filmado em um monocromático luminoso, com cenários, madeleines e epifanias que parecem uma versão mais emoliente de Terence Davies . Alguns podem achar que o filme é sentimental ou que não se enquadra no modelo de furia política e desespero considerado apropriado para os dramas sobre a Irlanda do Norte e os Problemas. E sim, certamente há uma colherada de doçura (ou duas) nesta mistura, com uma pitada obrigatória de Van Morrison na trilha sonora. Há uma cena culminante importante sobre como desarmar um atirador no meio de uma rebelião, quando você não possui uma arma, que deve ser indulgentemente caridoso.

Mas este filme tem uma generosidade emocional, sagacidade e aborda um dilema daquele tempo que nem sempre foi compreendido: quando e se devemos fazer as malas para sair de Belfast? É uma questão compreensível de sobrevivência ou abandono da cidade natal amada aos extremistas? (Revelação completa: meu próprio pai deixou Belfast e foi para a Inglaterra, embora isso muito antes dos tempos deste filme.)

Estamos em 1969 e Jamie Dornan interpreta um homem que vive no norte de Belfast, num distrito predominantemente protestante, mas ainda com algumas famílias católicas. Ele é um encantador homem pacato, que passa o seu tempo na Inglaterra durante boa parte da semana, fazendo trabalho de carpintaria especializada e atormentado com a necessidade de pagar os impostos.

Quando sua muito martirizada esposa (Caitríona Balfe) escreve para a Receita Federal pedindo confirmação de que sua dívida foi finalmente quitada, isso leva as autoridades a examinar mais a fundo seus negócios obscuros e decidem que ele deve mais quinhentas libras. Este é um momento horrivelmente tão sem glamour, nada cinematográfico, que certamente deve vir da vida real. À familia incluem-se dois meninos, o mais velho Will (Lewis McAskie) e o mais jovem Buddy, interpretado pelo novato Jude Hill, cuja incompreensão atordoada e com seus olhos arregalados dá o tom ao filme. Os avós vivem com eles sob o mesmo teto e são interpretados com uma doçura encantadora por Ciarán Hinds e Judi Dench (esta última da umas pitadas em todas as cenas, acalmando os homens com seus comentários piadistas por detrás de seu exemplar do “People’s Friend”).

A violência explode quando os endurecidos sindicalistas expulsam os católicos de suas casas e montam barricadas para proteger seu novo feudo contra a retaliação republicana – um gangsterismo que exige pagamentos das famílias locais, executado pelo valentão Billy Clanton (Colin Morgan), mais ou menos pragmaticamente aceito pelo homem local Frankie West (uma grande participação especial de Michael Maloney), mas ressentido com o personagem de Dornan. Ele começa a mostrar para sua esposa e filhos brochuras de assistência a emigrantes em Vancouver e Sydney: lugares fora do alcance dos terroristas e do cobrador de impostos, mas tão estranhos a eles que poderiam muito bem ser exibidos no Star Trek, o qual assistem os meninos na TV todas as semanas. E o pobre Buddy precisa continuar com sua vida, o que envolve muitos anseios não correspondidos por uma garota da sua sala de aula.

Jude Hill como Buddy. Fotografia: Rob Youngson / Focus Features

O filme alterna com facilidade da casa para a rua, para a sala de aula, para pub e de volta para casa, e talvez seja mais completo e rico quando nada especificamente trágico ou relacionado a problemas está acontecendo. Adorei a cena em que Buddy é ensinado a dizer o que falar se um estranho exige saber se ele é protestante ou católico: ele mente ou blefa com a verdade? (Eu me lembrei da rotina de Dave Allen sobre o que acontece se você tenta ficar encima do muro e alegar que é judeu – o homem duramente retruca: “Você é um judeu protestante ou um judeu católico?”)

A família consegue um pouco de escapismo através do cinema: Raquel Welch no seu biquíni peludo no filme Um milhão de anos AC, o carro voador caindo em um penhasco em Chitty Chitty Bang Bang, High Noon na TV. Há uma ida deles ao teatro para ver A Christmas Carol; o falecido John Sessions tem sua última atuação no teatro de Belfast, Joseph Tomelty, interpretando o fantasma de Marley. Mas, inevitavelmente, Buddy se envolve em algumas encrencas: surrupiando uma barra de delícia turca e depois se envolvendo na subtração de uma caixa de sabão em pó de um supermercado que fora atingido por um motim.

Não é o mais correto dizer que existe um traço de inocência no pesadelo deste filme, mas certamente há um traço de normalidade e até de banalidade, que assume seu próprio tom surreal. Cartas de amor ao passado são sempre endereçadas a uma ilusão, mas aí está essa sedutora peça de criação dos mitos de Branagh.

Belfast será exibido no festival de cinema de Londres e será lançado em 12 de novembro nos Estados Unidos e 25 de fevereiro no Reino Unido.

Fonte: The Guardian, Outubro 2021.

Escrito por: Peter Bradshaw (twitter: @ PeterBradshaw1)

Traduzido por: Carla Santelli (instagram: @carla_santelli)

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